A morte mora ao lado
 



Cronicas

A morte mora ao lado

Rita Paldes Faria


A MORTE MORA AO LADO...

Em tempos de pandemia e de isolamento social, percebi que virei uma daquelas vizinhas fofoqueiras. Que sabem de tudo da vida dos outros, escuta todos os ruídos da rua desde a transloucada catadora de latas berrando com sua neta às 6 horas da manhã, ao carteiro no seu horário habitual, as entregas de mercadorias, ao entra e sai de pessoas. A qualquer movimentação seja de uma mosca, um beija-flor ou pássaro já estou com os ouvidos em riste a espreita de um acontecimento.
Noite dessas varando a madrugada da insônia escuto, em voz baixa, quase um sussurro falando no celular. De repente uma agitação momentânea, a batida do portão. Fui espiar claro! Uma moça abria e fechava o barulhento espaldar de ferro olhando para cima e para baixo numa ansiedade característica das esperas. Eis que um carro para, salta um rapaz apressado que corre para os seus braços, talvez o seu namorado. Subitamente um choro compulsivo, ensurdecedor, vindo do fundo d’alma, daquele que paralisa o momento e qualquer expectador. O lamento se tornou cada vez mais forte e mais potente o que fez a minha curiosidade despertar e tentar compreender o que estava ocorrendo. Morreu alguém?...Pensei de imediato! Mas quem?... Moro num prédio pequeno, de quatro andares e uma cobertura, dois apartamentos por andar, totalizando nove residências, afastado, no meio do verde e rodeado pela Mata Atlântica, na subida para o Alto da Boa Vista, Rio de Janeiro. Os cachorros das cercanias começaram a se unir aos prantos com os seus uivos e a minha cabeça girava tentando entender o significado daquilo tudo. O casal adentrou.
Voltei para a cama pensativa e reflexiva com a imaginação fértil a criar situações imaginárias até que o silêncio da noite foi cortado novamente pelo som característico e familiar da sirene de uma ambulância. Estaciona e saem socorristas com seus materiais, maleta e maca. Alguém está passando mal. Quem? Enquanto divago fico olhando o teto refletido com o piscar das lâmpadas de emergência vermelho-amareladas intensas e acompanhando o pulsar do meu coração... Não pude deixar de lembrar da notícia de falecimento da minha mãe, tão jovem, 50 anos, na qual meu namorado atual esposo veio me dar a notícia numa madrugada parecida. Qualquer semelhança não é mera coincidência! Aos poucos me vi refletindo sobre os possíveis candidatos a essa a tal investidura. Comecei pelo quinto andar. De cima para baixo porque na cobertura reside sozinho o pai de outra moradora que está no exterior em viagem aguardando o nascimento da neta. Por que será que começamos sempre com os mais velhos, raciocinei. Porque idoso pode ou tem direito de morrer primeiro? Não, ele não é. Conheço bem a família toda há anos e não havia nenhuma semelhança com a moça desesperada. Quarto andar, moradores: a atriz da Globo e o casal de argentinos. A atriz tem a voz tão marcante e sonora que reconheceria à distância e não tem filha, só filhos. O casal de argentinos seria entregue pelo sotaque característico. Descartados. Terceiro andar, a vizinha obesa que mora sozinha, mas escuto seus passos pesados para lá e para cá talvez também tentando compreender os fatos. Ao seu lado a inquilina que esta no exterior. Eliminadas igualmente. Segundo andar, apartamento de frente vazio e o outro não consigo recordar se está ocupado ou não. Primeiro andar, o meu de frente e o outro vazio. Estaca zero. Repassando... E assim fui levantando e deitando, conjecturando e errando na mesma ordem.
Novo movimento na área. Surge um membro da equipe de socorro, sozinho, abre e fecha a porta vai e vem da ambulância com força e determinação, procura algo e sai com uns papéis e uma prancheta... Atestado de óbito? Já prevejo. Cabeça a mil a essa altura, ansiedade crescendo e finalmente observo que todos vão embora, sem sirene, sem motor ligado a mil e vazia... Vazia como o silêncio das mais profundas desilusões, deixando para trás aquilo que seria o motivo de sua vinda: a luta pela vida! E nesse interim começa a chegada e a movimentação de praticamente um velório. Carros, pessoas, abraços, soluços e desesperos. Continuava observando sem reconhecer ninguém. Uma senhora de cabelos pretos, corte Chanel era amparada e consolada pelos visitantes, além da moça do portão que se aconchegava a ela, com uma semelhança física sem igual, talvez filha, acredito. Resido há 27 anos nesse edifício e é a primeira vez que presencio algo desse tipo e não reconhecer ninguém era a pior prova que era submetida pela incapacidade de sequer oferecer alguma espécie de ajuda ou de apoio, principalmente em tempos de coronavírus. A incógnita ainda era total tanto dos acontecimentos quanto dos fatos vindouros relacionados a ela até que o ruído estrondoso de um carro velho, com o motor barulhento e descarga explodindo fez-se presente e aguçou os meus ouvidos e sentidos reconhecendo o seu significado:
-“Aqui é o número 480? Estrada Velha da Tijuca?... É da Santa Casa...".
Óbito confirmado. Só me restava saber de quem e rezar por essa pobre alma. Sai o corpo, sai o cortejo fúnebre encerrando a interrupção daquela noite anormal e incomum... Incomum? Desço sonolenta e faço a pergunta que não quer calar a pessoa mais informada desse mundo: o porteiro.
- “Melchíades, quem morreu?”.
- “Morreu... Alguém morreu?”.
Nossa, nem ele sabe. Difícil, pensei. Zelador limpando a entrada. Refiz a pergunta:
-“Edson, quem morreu?”.
-Morreu?...Morreu alguém?...”Não “tô” sabendo...”.
- “Edson, você mora na portaria, ao lado do play, não ouviu nada nessa noite?”.
- “Não... Bem... Até que ouvi um barulho... mas pensei que fosse um ladrão e não saí para ver...”.
Ah tá, ótimo, argumentei com os meus botões, se fosse um ladrão estaríamos todos roubados, literalmente.
- “Ok, Edson, faz o seguinte: limpa bem esse elevador, passa álcool em tudo, no blindex, nas maçanetas, porque foi um entra e sai muito grande por aqui. Além do mais o corpo deve ter saído pelo elevador e não sabemos a causa da morte”, orientei.
Ao abrirmos a porta de acesso nos deparamos com um tapete de porta, desses de entrada. Meu esposo questionou:
-“Edson, que tapete é esse? De quem é?”.
- “É do Seu Manolo...”, ele respondeu.
Charada matada. Entreolhamo-nos. A ficha caiu... um pesar e uma dor. Seu Manolo! Como pude ter me esquecido dele? Professor recém-aposentado da UFRJ, catedrático, doutorado, escritor de livros e publicações. Morador eremita, somente o via entrando e saindo devagarzinho do prédio com sua bengala de apoio para lecionar, com os taxis de sempre o esperando na garagem devido a sua dificuldade de locomoção consequência de alguma sequela motora. Foi professor do meu filho na faculdade, a qual tinha muita consideração a sua pessoa mesmo sendo de aspecto aparentemente introspectivo e solitário.
- “Que Deus o tenha!”, murmurei.
Toda essa situação conflitante permaneceu e ainda permanece me trazendo várias reflexões e constatações. A primeira de todas: não sou tão fofoqueira assim, pois nem conheço direito meus vizinhos! Não sabia que ele era casado nem muito menos que tinha uma filha, pois nunca encontrei com as mesmas no período de aproximadamente seis anos que residiram aqui. Sua vida pessoal era reservada e foi preservada como tal. Depois que se aposentou as saídas se tornaram escassas e os taxis não paravam mais na porta da garagem. A pandemia nos fez isolados sem ter oportunidade de encontros fortuitos e de cumprimentos diários de bom dia, boa tarde ou boa noite. Ou seja, a morte mora ao lado, só não enxerga quem não quer ver!




 

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